Dominar o Dragão Interior

Na tradição xintoísta, a espada completa, com o espelho e as joias, formam os três tesouros nacionais do Japão. Diz essa tradição que o Caos era um oceano no qual manifestaram-se três divindades, uma andrógena, uma feminina e uma masculina. Esse trio criou os demais deuses, até surgir Izanagui e Izamami; um deus e uma deusa, respectivamente.

Esse casal criou o Japão e seus filhos foram Amaterasu, deusa do sol; Susano, deus do trovão; e a deusa da lua.

Lembrando a tradição atribuída a São Jorge, conta-se que Susano encontrou a espada, um dos três tesouros nacionais, quando enfrentou um dragão de oito cabeças na província de Izumo, na costa ocidental, para libertar uma deusa, cujas irmãs, ano a ano, eram devoradas pelo monstro.
Susano, que matou o dragão fazendo-o beber oito barris de saquê, retirou a espada de sua cauda e casou-se com a deusa libertada, doando a arma para sua irmã, Amateratsu. A arma tornou-se um dos tesouros do Japão porque Amateratsu entregou-a ao neto, Ninigi, para submeter os habitantes do arquipélago (provavelmente os Ainos, povo de raça branca). No Japão, além da raça amarela, tem também um povo com traços indígenas. A divinização da espada Katana tornou-se pois fácil de se entender. Além de cada arma trazer em si um pouco da essência sagrada da arma encontrada por Susano dentro do dragão, também reúne em si dois Kami próprios, o Kami do fogo e o Kami do ferro. São esses Kami que deverão ser propiciados pelo ferreiro que pretenda forjar uma arma.

Um dos maiores tesouros japoneses roubado pelos americanos, na rendição japonesa, foi as incontáveis espadas Katanas com centenas de anos. A luta de Susano contra o dragão (como a luta de São Jorge) é a história exemplar dos deuses que vencem o caos das forças naturais indomadas (o dragão) e dessas forças, agora “mortas”, retira as já controladas, que pode usar para sua própria defesa e para defender a ordem: a espada. Como prêmio, casa-se com a jovem libertada, que na história de São Jorge representa a sabedoria virgem, Sophia (ver o ciclo do Graal, a iniciação do cavaleiro e a procura de sua dama). Mas duas correntes de pensamentos, estas profundamente preocupadas em fazer o aprendiz vivenciar seus princípios: o taoismo e o budismo - este último principalmente sob a sua interpretação Zen -, caracterizam-se por procurar a verdade da forma mais direta possível, afastando-se do artificialismo das construções intelectuais e usando-as apenas como “suporte” para comprovar a experiência vivenciada. Nisso não diferem do xintoísmo, cujos mestres, indagados sobre a moral, pregavam ao fiel que “seguisse os genuínos impulsos de seu coração”. O devoto xintoísta raramente indaga-se sobre uma questão antológica, ele conhece a realidade do Kami, através de uma experiência direta da divindade e de uma sensitiva recognição, sabendo que o mais importante é uma aproximação intelectual com “filigranas teológicas”.

Esse é o mesmo espírito que anima Lao Tsé, ao afirmar: “O tao de que se pode falar nunca será o tao absoluto. Os nomes que podem ser dados nunca serão os verdadeiros nomes.” O budismo zen defende essa mesma forma de abordagem do real (não baseada nos conceitos intelectuais). Daio Kokushi, um dos mestres zen japoneses, escreveu um poema que termina assim: “Ó meus bons e respeitáveis amigos aqui reunidos! Se desejardes ouvir a estrondosa voz do Dharma (lei), esgotais vossas palavras, esvazia vossos pensamentos. Só então podereis reconhecer essa essência una, pois assim diz o irmão Hui – a lei de Buda não é para ser abandonada aos meros pareceres humanos”.